sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Título 12: A saúde enquanto matéria política

Autor(as/es): Carapinheiro, Graça
Infos sobre o/a/s autor/a/s:
http://www.cies.iscte.pt/investigadores/ficha.jsp?pkid=22

Título: 
A saúde enquanto matéria política



No mesmo ano do trabalho da professora Carapinheiro, 2006, o prof. João Arriscado Nunes, publica um artigo que constata a crescente importância das pesquisas ligadas a saúde e a medicina, dentro das ciências sociais e humanas, nas três últimas décadas. Neste trabalho, o professor anota o aumento de interesse pela saúde por meio de diferentes fontes que vão desde o crescente número de artigos sobre a saúde ou número de publicações especializadas até “a incorporação das ciências sociais e das contribuições destas na formação e pesquisa em saúde[...]”(Nunes, 2006;2). Além da intenção de contribuir para um alargamento da discussão sobre o papel das ciências sociais nas pesquisas em saúde, o artigo possui os objetivos de 1. apresentar reflexões sobre os modos de intervenção dos cientistas sociais na saúde e na medicina, 2. identificar os principais eixos temáticos e orientações das ciências sociais que contribuem para um debate transnacional de resgate de problemas secundarizados, negligenciados ou silenciados pelos estudos do norte. Em relação aos modos de intervenção dos cientistas sociais, o autor  apresenta a necessidade de criar uma concepção solidária destes com a saúde. A concepção solidária diz respeito a participação do cientista social na promoção de qualquer atividade que garanta a saúde como um direito fundamental e, principalmente, a realização de ações que promovam o aparecimento de qualquer forma de discriminação ou exclusão do exercício desse direito, que pode ser pela produção do conhecimento biomédico em saúde; denúncia a violações do direito a saúde e dos direitos humanos; produção coletiva de testemunhos de privação e qualquer tipo de sofrimento; reconhecimento da saúde como um direito de todos; definição de formas de ação afirmativa; pesquisa de maneiras participativas sobre ações de promoção e defesa da saúde; promoção ou facilitação dos cidadãos no debate público; a reorientação da bioética e da ética médica.
O livro organizado pela profa. Carapinheiro possui textos que abordam uma ou mais das produções de conhecimento elencadas por Nunes. Em particular ao artigo que tomo como base para este trabalho enquadra-se no reconhecimento da saúde como um direito de todos. O referido artigo ergue-se sobre a análise de documentos do governo, estudo empírico com profissionais de saúde e pacientes, e pesquisas que a professora fez parte no passado. Nesta base, na primeira parte do texto, a pesquisadora apresenta o alinhamento das políticas do serviço de saúde português com as diretrizes internacionais sem, contudo, relegar a forte influência dos interesses nacionais. Com isso, constrói uma perspectiva conflituosa entre “a produção de políticas públicas nacionais, cujos interesses eram predominantemente de carácter paroquial e com alcance social limitado, face os impulsos modernistas, de larga amplitude nacional, que se ensaiavam na Europa desde o princípio do século passado.” (Carapinheiro, 2006; 139). Essa perspectiva ainda é ilustrada pela metáfora de uma oscilação pendular que evidencia a conflitualidade entre interesses internacionais e nacionais na produção da política de saúde e, também, entre o passado e o futuro das ideias sobre a saúde. A conflitualidade entre as diretrizes internacionais e os interesses nacionais existentes no direcionamento de todo o sistema de saúde também pode ser reconhecido nos direcionamentos que Portugal realiza para as doenças raras. Em 2008, seguindo as diretrizes pactuadas em um congresso organizado pela EURORDIS[1], Portugal cria o Plano Nacional para as Doenças Raras. A primeira vista, a largada para a corrida de criação de planos europeus para as doenças raras teve em Portugal um dos seus agentes de frente. Contudo, considerando a realidade interna do país que, no mesmo ano, começava a entrar em recessão imposta pelo mercado financeiro,  a implantação do plano foi postergada seguidamente e, até 2014, o país ainda não conta com a efetividade de seu plano.
O sistema de saúde português possui a característica de, primeiro, realizar o alinhamento com as diretrizes internacionais para, então, e em tempo indeterminado, promover a aplicação prática das diretrizes internamente. Assim como, atualmente, há a postergação da implantação do Plano Nacional para as doenças raras, as diretrizes para os Centros de Saúde e cuidados primários, criados na década de 60, somente foram colocados em práticas 20 anos depois de sua criação oficial. Em particular ao atraso destas diretrizes, principalmente da saúde preventiva e cuidados primários, é uma das bases que levou o sistema da saúde à centralidade da visão hospitalocêntrica e, consequente, marginalização dos serviços dos Centros de Saúde e seus  profissionais. Assim, desde o século passado, as reformas em saúde “desinvestem nos cuidados primários e dão prioridade aos recursos técnicos, materiais e humanos do hospital, reforçando sempre a sua centralidade no sistema.”(Carapinheiro, 2006; 145). Realizando, na primeira parte o texto, a construção histórica do serviços da saúde, com a caracterização que seus fundamentos foram criados na década de quarenta (principalmente as perspectivas curativa, preventiva e construtiva da saúde), como resultado de políticas internacionais e que os anos seguintes foram destinados para a realização de uma organização interna que sustentasse a estrutura criada, seja pela contratação de pessoal ou por medidas de regimento e política internas, a autora elucida a vulnerabilidade do sistema de saúde e conclui que a saúde pública está em risco. Sintetiza que as oscilações baseiam-se nas ideias do passado que se reencontram nos "momentos de viragem" da saúde, para uma reevocação ideológica de caráter assistencial (submetida a lógica da modernização), hospitalocêntrica (inovações e novos modelos de gestão) e sanitarista (regulação internacional).
Na segunda parte do texto, que pode se enquadrar na pesquisa de maneiras participativas sobre ações de promoção e defesa da saúde, a autora identifica a influência das orientações políticas nos saberes dos profissionais da saúde. Primeiramente, relembra da importância de organização hospitalar no processo de conhecimento do sistema de saúde. No trabalho que desenvolveu, descobriu que o poder médico baseava-se na dominância da divisão do trabalho hospitalar e que essa dominância gera a periferialização de outras profissões. A relação de dominância replica-se tanto nas relações entre hospital e centro de saúde quanto nas relações sociais. Nesse sentido, tangencia a ação solidária de produzir condições teóricas para a reorientação da bioética e da ética médica. Em seguida, ao analisar as associações profissionais, destaca a maior vulnerabilidade das profissões não médicas para a conservação estratégica dos saberes e delimitação das fronteiras profissionais, que influenciam a posição na organização da divisão do trabalho. A partir desta constatação a autora pensa nos lugares marginais do sistema de saúde preenchidos, principalmente, pelos Centros de Saúde (CS) e os profissionais que lá atuam. Também, a autora sinaliza a precarização dos próprios serviços de saúde primário onde, apesar do discurso e orientações políticas, nada é feito de maneira prática para tornar a medicina preventiva e o trabalho e em equipe, bases do CS, efetivas. A autora se faz deste último argumento para concluir a segunda parte do texto com a constatação 1.de novos atores que desafiam as fronteiras de saberes, 2.andamento de processos para reconstituição de identidades profissionais e 3. a revisão contínua do valor social das profissões a partir do caráter estratégico dos saberes periciais.
O título a saúde enquanto culturas em conflito, aborda a relação entre paciente e profissionais médicos e se enquadra na promoção ou facilitação dos cidadãos no debate público. De acordo com a autora, enquanto aqueles utilizam estratégias e recursos, formais e informais, para contornarem os obstáculos do sistema de saúde, os profissionais médicos não reconhecem o esforço dos indivíduos e garantem um lugar subalterno do saber construído pelos leigos. É neste contexto entre saber e não saber, conhecimento e não reconhecimento, que a autora destaca a importância sociológica em perceber o sistema de saúde como um sistema de resistência ao saber leigo.
A última parte do texto desperta todos os sentidos que poderiam estar distraídos e, sem dúvidas, é o mais interessante, apesar de ser o mais curto. Por tocar na validade da produção de conhecimento leigo para a saúde, vem a tona todos os estudos que defendem essa validade e que abordam o sofrimento dos doentes que não conseguem ser acolhidos pelos Sistemas de Saúde. Enquadra-se nas perspectivas de (Callon & Rabeharisoa, 2003) sobre a “pesquisa na selva” [2] para expressarem o cenário que se abre às pessoas que se jogam para o entendimento sobre alguma doença e posicionam-se como especialistas pela experiência, no mesmo patamar dos médicos e, portanto, no direito de contenção do saber/poder médico. Com isso, retomando a ideia do professor Nunes, sobre os principais eixos temáticos e orientações das ciências sociais para a saúde como a biomedicalização, biosocialidade e biopoder; a “velha” e a “nova” saúde pública; o público e o privado; acção colectiva e participação; saúde e direitos humanos, o texto de Carapinheiro e todo este trabalho enquadram-se nos eixos de acção coletiva e participação, e saúde e direitos humanos.




[1] Organização europeia para as doenças raras, www.eurordis.org
[2] Tradução livre para “research in the wild”.

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