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Título: A saúde enquanto matéria política
No mesmo ano do trabalho da professora Carapinheiro, 2006, o
prof. João Arriscado Nunes, publica um artigo que constata a crescente importância
das pesquisas ligadas a saúde e a medicina, dentro das ciências sociais e
humanas, nas três últimas décadas. Neste trabalho, o professor anota o aumento
de interesse pela saúde por meio de diferentes fontes que vão desde o crescente
número de artigos sobre a saúde ou número de publicações especializadas até “a incorporação
das ciências sociais e das contribuições destas na formação e pesquisa em saúde[...]”(Nunes,
2006;2). Além da intenção de contribuir para um alargamento da discussão sobre
o papel das ciências sociais nas pesquisas em saúde, o artigo possui os
objetivos de 1. apresentar reflexões sobre os modos de intervenção dos
cientistas sociais na saúde e na medicina, 2. identificar os principais eixos
temáticos e orientações das ciências sociais que contribuem para um debate
transnacional de resgate de problemas secundarizados, negligenciados ou
silenciados pelos estudos do norte. Em relação aos modos de intervenção dos
cientistas sociais, o autor apresenta a
necessidade de criar uma concepção solidária destes com a saúde. A concepção
solidária diz respeito a participação do cientista social na promoção de
qualquer atividade que garanta a saúde como um direito fundamental e,
principalmente, a realização de ações que promovam o aparecimento de qualquer
forma de discriminação ou exclusão do exercício desse direito, que pode ser
pela produção do conhecimento biomédico em saúde; denúncia a violações do
direito a saúde e dos direitos humanos; produção coletiva de testemunhos de
privação e qualquer tipo de sofrimento; reconhecimento da saúde como um direito
de todos; definição de formas de ação afirmativa; pesquisa de maneiras
participativas sobre ações de promoção e defesa da saúde; promoção ou
facilitação dos cidadãos no debate público; a reorientação da bioética e da
ética médica.
O livro organizado pela profa. Carapinheiro possui textos
que abordam uma ou mais das produções de conhecimento elencadas por Nunes. Em
particular ao artigo que tomo como base para este trabalho enquadra-se no reconhecimento da saúde como um direito de
todos. O referido artigo ergue-se sobre a análise de documentos do governo,
estudo empírico com profissionais de saúde e pacientes, e pesquisas que a
professora fez parte no passado. Nesta base, na primeira parte do texto, a
pesquisadora apresenta o alinhamento das políticas do serviço de saúde
português com as diretrizes internacionais sem, contudo, relegar a forte
influência dos interesses nacionais. Com isso, constrói uma perspectiva
conflituosa entre “a produção de políticas públicas nacionais, cujos interesses
eram predominantemente de carácter paroquial e com alcance social limitado,
face os impulsos modernistas, de larga amplitude nacional, que se ensaiavam na
Europa desde o princípio do século passado.” (Carapinheiro, 2006; 139). Essa
perspectiva ainda é ilustrada pela metáfora de uma oscilação pendular que
evidencia a conflitualidade entre interesses internacionais e nacionais na
produção da política de saúde e, também, entre o passado e o futuro das ideias
sobre a saúde. A conflitualidade entre as diretrizes internacionais e os interesses
nacionais existentes no direcionamento de todo o sistema de saúde também pode
ser reconhecido nos direcionamentos que Portugal realiza para as doenças raras.
Em 2008, seguindo as diretrizes pactuadas em um congresso organizado pela EURORDIS[1],
Portugal cria o Plano Nacional para as Doenças Raras. A primeira vista, a
largada para a corrida de criação de planos europeus para as doenças raras teve
em Portugal um dos seus agentes de frente. Contudo, considerando a realidade
interna do país que, no mesmo ano, começava a entrar em recessão imposta pelo
mercado financeiro, a implantação do
plano foi postergada seguidamente e, até 2014, o país ainda não conta com a
efetividade de seu plano.
O sistema de saúde português possui a característica de,
primeiro, realizar o alinhamento com as diretrizes internacionais para, então,
e em tempo indeterminado, promover a aplicação prática das diretrizes
internamente. Assim como, atualmente, há a postergação da implantação do Plano
Nacional para as doenças raras, as diretrizes para os Centros de Saúde e
cuidados primários, criados na década de 60, somente foram colocados em
práticas 20 anos depois de sua criação oficial. Em particular ao atraso destas
diretrizes, principalmente da saúde preventiva e cuidados primários, é uma das
bases que levou o sistema da saúde à centralidade da visão hospitalocêntrica e,
consequente, marginalização dos serviços dos Centros de Saúde e seus profissionais. Assim, desde o século passado,
as reformas em saúde “desinvestem nos cuidados primários e dão prioridade aos
recursos técnicos, materiais e humanos do hospital, reforçando sempre a sua
centralidade no sistema.”(Carapinheiro, 2006; 145). Realizando, na primeira
parte o texto, a construção histórica do serviços da saúde, com a caracterização
que seus fundamentos foram criados na década de quarenta (principalmente as
perspectivas curativa, preventiva e construtiva da saúde), como resultado de
políticas internacionais e que os anos seguintes foram destinados para a
realização de uma organização interna que sustentasse a estrutura criada, seja
pela contratação de pessoal ou por medidas de regimento e política internas, a
autora elucida a vulnerabilidade do sistema de saúde e conclui que a saúde
pública está em risco. Sintetiza que as oscilações baseiam-se nas ideias do
passado que se reencontram nos "momentos de viragem" da saúde, para
uma reevocação ideológica de caráter assistencial (submetida a lógica da
modernização), hospitalocêntrica (inovações e novos modelos de gestão) e sanitarista
(regulação internacional).
Na segunda parte do texto, que pode se enquadrar na pesquisa de maneiras participativas sobre
ações de promoção e defesa da saúde, a autora identifica a influência das
orientações políticas nos saberes dos profissionais da saúde. Primeiramente,
relembra da importância de organização hospitalar no processo de conhecimento
do sistema de saúde. No trabalho que desenvolveu, descobriu que o poder médico
baseava-se na dominância da divisão do trabalho hospitalar e que essa
dominância gera a periferialização de outras profissões. A relação de
dominância replica-se tanto nas relações entre hospital e centro de saúde
quanto nas relações sociais. Nesse sentido, tangencia a ação solidária de
produzir condições teóricas para a reorientação
da bioética e da ética médica. Em seguida, ao analisar as associações
profissionais, destaca a maior vulnerabilidade das profissões não médicas para
a conservação estratégica dos saberes e delimitação das fronteiras
profissionais, que influenciam a posição na organização da divisão do trabalho.
A partir desta constatação a autora pensa nos lugares marginais do sistema de
saúde preenchidos, principalmente, pelos Centros de Saúde (CS) e os
profissionais que lá atuam. Também, a autora sinaliza a precarização dos próprios
serviços de saúde primário onde, apesar do discurso e orientações políticas,
nada é feito de maneira prática para tornar a medicina preventiva e o trabalho
e em equipe, bases do CS, efetivas. A autora se faz deste último argumento para
concluir a segunda parte do texto com a constatação 1.de novos atores que
desafiam as fronteiras de saberes, 2.andamento de processos para reconstituição
de identidades profissionais e 3. a revisão contínua do valor social das
profissões a partir do caráter estratégico dos saberes periciais.
O título a saúde enquanto culturas em conflito, aborda a
relação entre paciente e profissionais médicos e se enquadra na promoção ou facilitação dos cidadãos no
debate público. De acordo com a autora, enquanto aqueles utilizam estratégias
e recursos, formais e informais, para contornarem os obstáculos do sistema de
saúde, os profissionais médicos não reconhecem o esforço dos indivíduos e
garantem um lugar subalterno do saber construído pelos leigos. É neste contexto
entre saber e não saber, conhecimento e não reconhecimento, que a autora
destaca a importância sociológica em perceber o sistema de saúde como um
sistema de resistência ao saber leigo.
A última parte do
texto desperta todos os sentidos que poderiam estar distraídos e, sem dúvidas,
é o mais interessante, apesar de ser o mais curto. Por tocar na validade da produção
de conhecimento leigo para a saúde, vem a tona todos os estudos que defendem
essa validade e que abordam o sofrimento dos doentes que não conseguem ser acolhidos
pelos Sistemas de Saúde. Enquadra-se nas perspectivas de (Callon &
Rabeharisoa, 2003) sobre a “pesquisa na selva” [2]
para expressarem o cenário que se abre às pessoas que se jogam para o
entendimento sobre alguma doença e posicionam-se como especialistas pela
experiência, no mesmo patamar dos médicos e, portanto, no direito de contenção
do saber/poder médico. Com isso, retomando a ideia do professor Nunes, sobre os
principais eixos temáticos e orientações das ciências sociais para a saúde como
a biomedicalização, biosocialidade e biopoder; a “velha” e a “nova” saúde
pública; o público e o privado; acção colectiva e participação; saúde e direitos
humanos, o texto de Carapinheiro e todo este trabalho enquadram-se nos eixos de
acção coletiva e participação, e saúde e direitos humanos.
[1] Organização europeia
para as doenças raras, www.eurordis.org
[2] Tradução livre para
“research in the wild”.