segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O uso da bicicleta como uma jaula antidemocrática

Li em algum dos últimos textos que é comum a tomada de causas de um povo dominante pela população que vive a dominação.

O texto era muito interessante e essa afirmação colocou-me a matutar um pouquinho. Lembrando a minha avó "A necessidade faz o ladrão". Isso quer dizer que as nossas ações são reflexos não somente das oportunidades que fomos expostos durante a nossa vida mas, também, daquilo que achamos como necessidade. Uma "necessidade mundial" comum nos últimos tempos é o apelo ao uso da bicicleta como transporte. Os argumentos vão desde que essa opção faz bem à saúde até a sua contribuição para o bem coletivo. Sem questionar o prazer que é andar de bike ou Camelo, para os "calangos do cerrado", e os bens que traz para a nossa saúde física e mental, pensar no seu uso como transporte é um exercício mental interessante.

Seguramente, o costume em usar a bicicleta como transporte, lê-se seguir para o trabalho, tem bases muito menos idealistas que as de hoje. Tomamos por base um agrupamento familiar com trabalhadores que vivem com um salário mínimo. Para que todos os desejos da família caibam dentro de seu orçamento, é preciso que os seus membros realizem opções de consumo diariamente (reforço o caso de tomada de um exemplo uma vez que essa opção é real para toda a população, mas em diferentes graus e formas). Assim como os primeiros homens que lutavam para garantir a morada em cavernas ou residências rústicas, o acesso a água e a manutenção do fogo, ainda vivemos com base nesta tríplice sustentação somente com a diferença que o fogo foi substituído pela eletricidade. A partir da conquista adequada destas condições de vida, há a necessidade de garantir a alimentação e o vestuário. Sem tentar pormenorizar as características destes quesitos de sobrevivência e muito menos detalhar em uma análise de custos, passo a assumir, que os gastos com moradia, água, eletricidade, alimentação e vestuário, são despesas mensais e fixas, no sentido de não poderem ser colocadas de lado, uma vez, que são requisitos para a manutenção da vida. Portanto, apesar de existir uma pequena margem de manobra destes custos (gastar menos água, menos luz, priorizar alimentos da época e gastar com roupas o mínimo necessário), não é possível eliminá-las do orçamento mensal.

Ainda, com um salário mínimo o certo é que a família viverá em regiões afastadas dos grandes centros urbanos e de trabalho. Desta maneira, a distância entre o local de casa e o local de trabalho deverá ser percorrida, 1) a pé; 2) transporte público; 3) de bike. A combinação entre as formas de transporte pode ser realizada de acordo com o interesse do trabalhador e considerando o que eu passo a analisar nos próximos parágrafos.

A primeira opção pode ser levada a cabo se ela não for de extremo desgaste e não significar a perda do trabalho por conta do cansaço. Se elocubrarmos o suficiente para perceber que a distância entre local de trabalho e de residência pode ultrapassar os cinco kilômetros, contando com a relação que quanto mais próximo do centro urbano maior é o custo da moradia, conseguimos chegar em um exemplo distinto. Logicamente que, para esse caso, há a preservação de uma perspectiva otimista para um local com pequenas distâncias e baixa importância econômica.  Caso o trabalhador consiga morar no limite desta distância, 5 Km, e lembrarmos que a velocidade média do ser humano é de 5 Km/h, chegamos a 2 horas como tempo médio de deslocação diária. Isso significa que durante a semana esse trabalhador caminha durante 10h somente para fazer o trajeto Residência-Trabalho-Residência. Apesar de estar exposto as condições climáticas, além de poder levar consigo equipamentos de proteção, como um guarda-chuva em tempo chuvoso, a própria arquitetura da cidade pode oferecer-lhe condições de proteção. Protegido, ele não precisa ter grandes preocupações em relação as condições que consegue chegar até o local de trabalho porque a intensidade da caminhada tomada neste texto está entre a caminhada leve e a moderada.

O uso do transporte público é a opção de quase a totalidade dos trabalhadores. Além de oferecer a proteção ao indivíduo e garantir que as condições de seu vestuário não se alterem, ao tomarmos a velocidade média de um ônibus, a opção mais comum de transporte público, de 20 Km/h, a distância de 5 Km é vencida em 15 minutos. Assim, ao invés das 10 horas a pé para o trajeto residência-trabalho-residência, utilizando o ônibus, serão 2,5 horas mensais de deslocamento.  Contudo, essa opção pode transformar-se em uma fonte de despesas mensais fixas, mesmo quando os seus custos possuem a modalidade de co-participação empresarial ou governamental (no caso do Brasil o trabalhador arca com 6% de seu salário). Para uma família com trabalhadores, a análise destes custos é real e pode se mostrar comprometedora. Ainda, é preciso perceber a qualidade dos serviços do transporte público. Se os serviços conseguem manter o cumprimento aos horários planejados e a manutenção mecânica dos transportes, torna-se uma opção segura e confiável para qualquer pessoa que os utilize. O seu uso, portanto, é proporcional a qualidade de sua oferta. Em Alemanha, Holanda, EUA, Inglaterra, França e outros países que assumem essa consciência, o transporte público é utilizado por grande parte da população e de diversas classes sociais.

Tendo a locomoção a pé como gasto de considerado tempo e o transporte público como um possível gasto de dinheiro, vejamos o uso da bicicleta. Considerando que o trabalhador não possui qualquer intenção em fazer uma corrida com os veículos e planeja chegar ao local de serviço sem a necessidade inevitável de um banho, assumo que a velocidade média de 15 Km/h é bastante factível. Assim o tempo de 20 minutos pedalando, necessários para percorrer a distância entre a residência e o trabalho, é muito menor que o gasto a pé e um pouco superior ao tempo gasto pelo ônibus. Sendo uma boa alternativa no quesito tempo, analisaremos as despesas com a bicicleta. Os custos da bicicleta estão concentrados em sua própria aquisição uma vez que a manutenção pode ser feita pelo próprio dono e não há, de partida, como prever as despesas de manutenção sem um esticar da imaginação até o determinismo. Uma rápida pesquisa na internet sobre bicicletas novas (rede Continente e rede Extra de Supermercados) demonstra que, ao considerar as mais baratas, o preço de venda pode variar entre 20% a 40% do Salário Mínimo. Tendencialmente, o percentual menor de participação no  Salário Mínimo é em Portugal e o maior, no Brasil. Para título de exemplo, como é este texto, e julgando que a tomada do percentual de 20% não afeta a proposta que aqui se trabalha, assumo esse índice como parâmetro geral. Portanto, enquanto o valor para o transporte público de um trabalhador, tanto em Portugal quanto no Brasil, gira em torno dos 6%/mês do salário mínimo, a compra de uma bicicleta compromete 20% de seu salário. Porém, para não esquecer de minha origem contábil, é preciso percebermos o comportamento das despesas no tempo. Enquanto o custo com a bicicleta ocorre um única vez em 12 meses, o do transporte público ocorre 12 vezes, uma vez que é mensal. Assim, para um salário mínimo de 724 reais a despesa com a bicicleta, em 12 meses, é de 143 reais e com o ônibus é de 521. Portanto, considerando o item custo, a bicicleta aparece como uma opção mais vantajosa que o ônibus.

Mas, por outro lado, assim como é necessário realizar uma ginástica com os números para justificar a vantagem da bicicleta sobre o ônibus a partir dos custos anuais, caminho semelhante deve ser tomado para indicar o uso da bicicleta como uma opção criativa e, acima de tudo, social. Quem, algum dia, tentou fazer o trajeto residência-trabalho-residência de bicicleta, sabe que é preciso uma verdadeira logística e infra-estrutura para garantir as suas condições de igualdade perante os colegas que utilizam outros tipos de transporte para chegar ao trabalho. Primeiramente a logística. Antes de se aventurar no transporte de bicicleta, é preciso conhecer o trajeto mais favorável e o tempo necessário para percorrê-lo. Assim, além de não se meter na guerra com os carros, correr o risco de utilizar caminhos longos ou descobrir obstáculos repentinos, a pessoa consegue organizar o seu tempo desde a hora que acorda até a de início de seu expediente. Logicamente, essa opção somente é possível para quem não tem crianças pequenas ou o/a parceiro/a assume a responsabilidade de acompanhá-las de maneira integral. Vencida a logística, o candidato ao uso da bicicleta como transporte coloca a prova a sua consciência sobre a realidade. Além de constatar que o trânsito pode ser um local que repele o seu veículo conduzido por força humana, verá que é preciso ter em seu local de trabalho, ou por perto dele: estacionamento para bicicletas e um balneário que ele possa se recompor tanto do eventual esforço físico quanto do vestuário que, por precaução, não deve ser o mesmo que utilizou para andar de bicicleta. Sem correr qualquer risco, afirmo que o candidato encontrará quase nenhum local para estacionar sua bicicleta, a não ser em postes públicos ou árvores, e muito menos empresas que possuem, elas próprias, vestuários ou algum tipo de convênio que seus trabalhadores possam usufruir. Ao constatar todas as dificuldades para levar a cabo ao que se pretende, somente com muita criatividade que o adepto ao uso da bicicleta consegue encontrar razão para continuar com essa ideia. Mesmo constatando que não existe infra-estrutura mínima para o uso da bicicleta como meio de transporte para o local de trabalho, ainda há pessoas que conseguem fazer exercícios argumentativos suficientes que podem cansar até mesmo o mais paciente ouvinte e até simpatizante da proposta.

De longe já se sabe que a realidade dos trabalhadores, principalmente no Brasil, é objeto de preocupação de parcelas muito pequenas da sociedade. Muitas vezes, até aqueles que se enquadram como trabalhadores, refutam o exercício de verem a sua realidade, colocando seus desejos em campos que não são os da melhoria da sua própria qualidade de vida. Por isso o argumento prático utilizado até aqui não chega até aos que possuem a consciência "social" do uso da bicicleta. Não adianta seguir uma linha argumentativa semelhante a construída acima porque, no Brasil, a cabeça dos militantes do uso do veículo de propulsão humana não está no trabalhador ou na melhoria da nossa sociedade, mas, sim, na consciência "global" e em redes sociais.

Fora da necessidade do trabalhador em conseguir economizar os seus recursos por meio do uso da bicicleta, em cidades como a Berlim, por exemplo, onde há uma interação entre os tipos de transporte e todos são de qualidade, o uso da bicicleta torna-se uma opção real por causa, também, da geografia. Caracterizando-se como uma cidade plana, a pessoa que utiliza a bicicleta não possui muito esforço em vencer as distâncias que desejam. O clima também favorece porque com baixas temperaturas o ciclista consegue manter a sua preocupação com a transpiração em baixa. A questão da logística depende somente de encontrar um caminho adequado para realizar o trajeto porque além de conseguir manter um nível de apresentação pessoal adequado, consegue encontrar um estacionamento para deixar a sua bicicleta com certa facilidade. Em relação a preparação da comunidade para aceitar o trânsito de bikes, há espaços específicos para esses veículos, fazendo-o parte do trânsito local. Desta maneira, não havendo maiores preocupações para melhorar as condições do transporte público e pela própria cidade estar adaptada em acolher os "bicicleteiros", militar pelo uso da bicicleta como uma alternativa ao modelo do automóvel faz todo o sentido.

É nesse alemão e em suas ideias de ajudar o social que a elite burguesa do Brasil, digo, classe média brasileira, milita no uso da bike em nossas terras. Essa utilidade da bicicleta somente faz sentido na cabeça das pessoas que se dizem "conscientes" de nossa realidade, que conhecem o que acontece fora do Brasil, que participam de um movimento mundial e que, no fundo, junto com o seu visual e seu moderno Iphone, quer mesmo é gritar: Eu sou Cult!!!! Infelizmente, são esses os mais descolados da nossa realidade. Como argumentar tal proposta se a militância pelo uso de transportes públicos parece ser o caminho mais democrático e libertador para toda a sociedade? Democrático porque ao conseguirmos implantar o transporte público com qualidade, todas as pessoas poderão usufruir do mesmo direito de ir e vir, com as mesmas condições. Ao passarmos a usar o transporte público, logo, ele torna-se nosso e, esse sentimento de posse de um bem público transfigura-se em um de pertença a comunidade, onde o bem que eu luto para melhorar a vida privada reflete no ganho público de qualquer luta onde os laços comunitários são fortes. Ao termos um transporte público de qualidade, podemos escolher não somente aquele que menos impacta no bolso mas, também, o que oferece a melhor qualidade de conforto e segurança. Com a liberdade de podermos escolher, tomamos consciência que as nossas opções no uso do bem público também impacta na melhoria individual que buscamos. Essa liberdade é muito diferente daquela em que a atenção do virtual e a satisfação pessoal na pseudoideia de apoiar o social se assentam.

Antes de nos enjaularmos em ideias importadas e que ao mais leve salutar olhar crítico demonstra que são muito difíceis de se assumir, em uma realidade completamente diferente, devemos reconhecer a nossa cidadania global a partir de mudanças locais. A frente da militância do uso da bicicleta como uma forma de diminuir a quantidade de carros no trânsito e "poluição do planeta", tangenciando o bem-estar social mundial, está a luta para (re)democratização do transporte público e melhoria de sua qualidade. É a militância para o público que impacta no privado. Nestes termos, o perfil da pessoa "Cult" e antenada com a "rede", deve ser substituída pela pessoa consciente e presente na realidade.







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